Diferente das inscrições reais, que foram produzidas pelos reis, os documentos econômico-administrativos e jurídicos foram produzidos pelo povo.
A esmagadora maioria deles trata de itens econômico-administrativos e de direito privado, tais como notas promissórias, contratos (de venda, arrendamento ou doação de terra, casas e outras propriedades, ou de aluguel de escravos e gado), e registros de ações judiciais (Os Tempos dos Gentios Reconsiderados, página 138).
De importância para o nosso estudo é o fato de que esses documentos populares eram datados assim como se data documentos atualmente. Como naquela época não se dispunha de um ano corrente com um ponto de partida fixo, marcado por um acontecimento ou por convenção nacional, utilizava-se como ponto de partida o ano de reinado do rei que estivesse no poder. Como exemplo, o texto abaixo é um documento de templos, produzido para registrar a doação de sal cerimonial (Amel-Marduque é Evil-Merodaque, que foi muito citado em artigos anteriores).
Ina-sila trouxe um talento e meio de sal, o sattukku regular oferecido no mês de simanfor ao deus Usur-amassu. Dia seis do mês de simanu, do primeiro ano de Amel-Marduque, rei de Babilônia (Os Tempos dos Gentios Reconsiderados, página 138).
Foram encontrados dezenas de milhares de documentos populares, em média quase 600 para cada ano de reinado; quando se olha as datas, verifica-se que há documentos que abrangem todos os anos do período neobabilônico; em alguns casos, para quase todos os meses do ano. Com isso, pode-se afirmar que há documentos datados para:
- os 21 anos de Nabopolassar, mas nenhum para um possível 22º ano de reinado;
- os 43 anos de Nabucodonosor, mas nenhum para um possível 44º ano de reinado;
- os 2 anos de Evil-Merodaque, mas nenhum para um possível 3º ano de reinado;
- os 4 anos de Neriglissar, mas nenhum para um possível 5º ano de reinado;
- os 2 meses de Labashi-Marduque, mas nenhum para um possível 3º mês de reinado;
- os 17 anos de Nabonido, mas nenhum para um possível 18º ano de reinado.
A Torre de Vigia comumente alega que escribas e sacerdotes costumavam alterar documentos históricos para mudar uma versão, para esconder um fato vergonhoso, como uma derrota nas guerras. Esse argumento pode ser aplicado às crônicas babilônicas, e até mesmo às inscrições reais, que podiam contar deliberadamente alguma informação falsa, mas simplesmente não cabe aqui. Além de se tratar de documentos originais, produzidos na época dos acontecimentos, envolve registros produzidos por milhares de pessoas, ao longo de quase 100 anos, o que descarta qualquer motivo razoável para haver uma coordenação de tal magnitude, de modo a produzir documentos que confirmem todos os nomes dos reis já apresentados em estudos anteriores, que concordem com a duração de seus reinados, e que não haja nenhum nome novo.
O outro lado
Foi em 2011 que a Torre de Vigia pela primeira vez enfrentou o desafio de tentar desacreditar a evidência dos documentos populares. E eu não poderia deixar de começar esta parte do artigo sem expôr de imediato, em fonte tamanho doze, o que a Torre de Vigia confessou em uma nota de rodapé com fonte tamanho oito:
Há tabuinhas para todos os anos tradicionalmente atribuídos aos reis neobabilônios. Quando se somam todos os anos em que esses reis governaram e se calcula do último rei neobabilônio, Nabonido, para trás, chega-se à data de 587 AEC para a destruição de Jerusalém. Mas esse método de datação só é válido se cada rei sucedeu ao próximo imediatamente, sem que outros tenham governado entre eles (A Sentinela de 1º de novembro de 2011, página 24).
A confissão podia terminar sem a última frase, mas não é o estilo da Torre de Vigia. Visto que também não conta aos leitores Testemunhas que há dezenas de milhares de documentos, em média quase 600 para cada ano de reinado, a revista pode tranquilamente pegar meia dúzia de registros - exatamente meia dúzia - e apontar inconsistências, com o objetivo de mostrar que nem mesmo esses muitos milhares de registros econômicos formam evidência suficiente contra a data de 607 a.C.
Inconsistência na transição de Nabucodonosor para Evil-Merodaque
A revista começa por citar o pesquisador Ronald H. Sack, que em 1972 escreveu que havia tomado conhecimento de dois documentos datados do quarto e quinto mês, o que parecia contrariar o conceito de que Nabucodonosor havia reinado até o sexto mês do que se sabia ser o sexto mês do seu 43º ano de seu reinado. As perguntas são estas: Se Evil-Merodaque era rei no quarto mês, por que um registro da época diz que Nabucodonosor era rei ainda no sexto mês? Se Nabucodonosor era rei no sexto mês, poderia o seu reinado ser estendido para além disso, talvez para o seu 44º ano? Em apoio desta última especulação, a revista cita um registro datado do décimo mês do reinado de Nabucodonosor.
Identificação dos documentos citados:
- BM 80920 - quarto mês. / Evil-Merodaque
- BM 58872 - quinto mês. / Evil-Merodaque
- BM 55806 - décimo mês / Nabucodonosor
Referente à BM 80920, uma consulta ao documento no site do Museu Britânico mostra que a sua leitura foi refeita. O site faz constar “Regnal date: acc/7/20”, que significa Dia 20 do sétimo mês do ano de ascensão” de Evil-Merodaque ou, como consta no site, de Amel-Marduk. Segundo Jonsson, essa correção circula entre os eruditos desde os anos 90 e se declara surpreso que a revista A Sentinela tenha preferido publicar a informação desatualizada.
Sobre a BM 58872, a queixa da Torre de Vigia é válida e carece-se de uma explicação. Tratarei deste documento mais adiante.
A respeito da BM 55806, há problemas com o seu estado de conservação que levanta sérias dúvidas sobre se é possível interpretar corretamente a datação. O pesquisador C. B. F. Walker considera que há incertezas, mas aponta que o quinto mês é uma leitura plausível.
Evidentemente, o dia, o mês e até o ano na BM 55806 estão tão danificados que nenhuma conclusão cronológica pode ser baseada nesta tabuinha (Declaração de Jonsson em sua resposta ao artigo de A Sentinela de 1 de novembro de 2011).
Voltando à BM 58872, há algumas conjecturas sobre o porquê de ela ser datada do quinto mês de Evil-Merodaque, aparentemente pouco mais de um mês antes de ele ascender ao trono.
Em seu livro, à página 379, Jonsson considera que Nabucodonosor pode ter morrido no quinto mês e algumas pessoas podem ter continuado a datar documentos com o nome dele até ter ficado claro quem seria o novo rei. Há indicações de que Evil-Merodaque, filho de Nabucodonosor e sucessor legítimo, não era de boa índole e podia haver dúvidas se ele seria aceito como o novo rei da Babilônia. Uma corregência, devido a uma série de motivos, pode também justificar a inconsistência.
Sobre a possibilidade de o reinado de Nabucodonosor poder ser estendido além do seu 43º ano, há informações na Bíblia que tira essa possibilidade em definitivo. O livro sagrado declara que, no seu 8º ano de reinado, Nabucodonosor fez uma campanha militar contra o reino de Judá e levou cativo o rei Joaquim, que estava no trono havia apenas três meses. Essa informação, se combinada com Jeremias 52:31, que relaciona o 37º ano do cativeiro de Joaquim com o 1º ano do reinado de Evil-Merodaque, torna impossível que o reinado de Nabucodonosor seja estendido para além do seu 43º ano, pois isso faria avançar o 1º ano do reinado de Evil-Merodaque, o que tornaria impossível a sua coincidência com o 37º ano do cativeiro de Joaquim.
Como pode ser visto acima, a própria Bíblia nega suporte ao desejo da Torre de Vigia de estender o reinado de Nabucodonosor. Na apresentação desse argumento no meu livro, não pude deixar de chamar a atenção para uma declaração feita no apêndice do livro Venha o Teu Reino sobre o peso que se deve dar à Bíblia e a fontes “mundanas”:
Estamos dispostos a ser guiados principalmente pela Palavra de Deus, em vez de por uma cronologia que se baseia primariamente em evidência secular ou que discorda das Escrituras (Venha o Teu Reino, página 190).
E acrescentei:
Mas num contexto em que “uma cronologia que se baseia primariamente em evidência secular ou que discorda das Escrituras” parece favorecer a Torre de Vigia, a própria Bíblia foi posta de lado em favor de uma tênue evidência de que determinado rei reinou mais do que se já sabia
Inconsistência na transição de Evil-Merodaque para Neriglissar.
São citados dois documentos que apontam que Evil-Merodaque reinava durante o sétimo e décimo mês do que se sabe ser seu 2º ano de reinado. Um outro documento diz que Neriglissar era rei já no segundo mês. As perguntas são estas: Se Neriglissar era rei no segundo mês, por que um registro da época diz que Evil-Merodaque era rei ainda no décimo mês? Se Evil-Merodaque era rei no décimo mês, poderia o seu reinado ser estendido para além disso, talvez para o seu 3º ano?
Identificação dos documentos citados.
- BM 75106 - sétimo mês // Evil-Merodaque
- BM 61325 - décimo mês // Evil-Merodaque
- BM 75489 - segundo mês // Neriglissar
Mas a BM 75106 não é datada no sétimo mês do último ano de Amel-Marduque (o segundo ano), como afirmam os autores da Sentinela. A lista de correção de Walker mostra que ela é datada no quarto mês. (Resposta de Carl Olof Jonsson ao artigo da Sentinela de 1 de novembro de 2011)
A respeito dos outros dois documentos, o problema realmente existe. Uma possível solução consiste em examinar uma grande quantidade de registros e verificar se mais documentos confirmam a inconsistência. Até a presente data, os documentos citados são únicos. Quando são examinados documentos em grande quantidade, verifica-se que a mudança de reinado parece ter ocorrido no quinto mês.
Sobre a BM 61325, não está descartada a possibilidade de a data para o 10º mês ser um erro de escrita; ou pode tratar-se de uma corregência. Referente à BM 75489, que coloca Neriglissar como rei já no segundo mês, isso levanta a possibilidade de que ele pode ter sido considerado um rei inicialmente na sua própria região, ao norte de Babilônia, enquanto Evil-Merodaque continuava como rei em Babilônia. Em todo o caso, são apenas conjecturas; apesar disso, essa discrepância aponta, no máximo, para uma corregência de oito meses, mas não permite concluir que Evil-Merodaque reinou mais do que dois anos, e uma evidência a ser apresentada nos próximos parágrafos descarta completamente essa hipótese.
Um Bel-Sum-Ichcun reinou entre Evil-Merodaque e Neriglissar?
A Torre de Vigia precisa desesperadamente arranjar os 20 anos de sua cronologia, e uma das formas de se conseguir é mostrar que houve um ou mais de um rei nos seguintes intervalos:
- Entre Nabucodonosor e Evil-Merodaque;
- Entre Evil-Merodaque e Neriglissar;
- Entre Neriglissar e Labashi-Marduque;
- Entre Labashi-Marduque e Nabonido;
- Entre Nabonido e Ciro.
Referente ao intervalo entre Evil-Merodaque e Neriglissar, a Sentinela aponta para uma inscrição real, analisada em um livro de 1929, que aparenta dizer que Bel-Sum-Ichcun, o pai de Neriglissar, foi “rei de Babilônia”. De 1929 até 2011 passaram-se mais de 80 anos; desde aquela década surgiram novas evidências que descartam completamente a hipótese de ter havido um rei entre Evil-Merodaque e Neriglissar. Pode-se citar agora o Livro-Razão NBC 4897, que registra o crescimento anual de um rebanho durante 10 anos, do 37º ano de Nabucodonosor até o 1º ano de Neriglissar. Se algum Bel-Sum-Ichcun houvesse reinado antes de Neriglissar, necessariamente o 1º ano do reinado de Neriglissar estaria separado do 37º ano do reinado de Nabucodonosor por mais de 10 anos, nunca exatamente 10 anos (Conferir a resposta de Carl Olof Jonsson à revista a Sentinela de 1º de novembro de 2011).
Em razão de evidências como essa, a inscrição real citada pela Torre de Vigia precisou ser novamente analisada e agora alguns eruditos acreditam que houve erro de leitura, e que o próprio texto babilônico é ambíguo, isto é, admite múltiplas interpretações.
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