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Projeto 1914 - conclusão

A Torre de Vigia já publicou vários artigos incentivando as Testemunhas a buscarem conhecimento para fortalecer a fé. Por exemplo, na edição de A Sentinela de 1990, depois de citado o bom exemplo dos bereanos, foi escrito o seguinte:

Não menos meritória foi a atitude dos profetas de Deus da antiguidade. Eles fizeram “diligente indagação e cuidadosa pesquisa” a respeito da salvação que havia de vir por intermédio do Messias. (1 Pedro 1:10) Deus abençoou seus esforços. É óbvio, pois, que não há atalhos. Buscar ensinamentos com persistência e examiná-los com cuidado — este é o caminho para se descobrir toda a verdade da Bíblia! (A Sentinela de 15 de setembro de 1990, página 7).

Os incentivos da Torre de Vigia para que se busque conhecimento são louváveis por si só. No entanto, há um problema sério que não pode ser ignorado: a Torre de Vigia exige que as Testemunhas considerem a liderança da religião como sua única fonte de pesquisa, aceitando o conhecimento transmitido por ela sem questionamentos.

Jeová usa a sua organização para ensinar e alimentar o seu povo. Por isso, creia sem suspeitar a verdade esclarecida pelo “escravo fiel e discreto" (A Sentinela de 1º de março de 1963, página 136).

O pedido para que as Testemunhas não questionem as informações fornecidas pelo Corpo Governante não tem qualquer paralelo com o que foi solicitado aos primeiros cristãos. Se tal exigência existisse no primeiro século, a atitude dos bereanos mereceria condenação por parte de Paulo, não elogios.

CREDIBILIDADE E COERÊNCIA

Para muitos ex-membros, o Corpo Governante há muito perdeu qualquer credibilidade como fonte confiável de informação, seja sobre assuntos bíblicos ou seculares, como a cronologia da antiga Babilônia. As muitas incoerências, como as apresentadas nos parágrafos anteriores, e o constante revisionismo de doutrinas destacam a alta incerteza quanto à confiabilidade de suas crenças, apesar das declarações categóricas em interpretações de profecias. Isso exige que as Testemunhas de Jeová deixem urgentemente de considerar sua liderança religiosa como uma autoridade incontestável; caso contrário, podem tragicamente se ver seguindo um "guia cego", como Jesus Cristo alertou.

No que diz respeito à cronologia da antiga Babilônia, sobre a qual o Corpo Governante se apresenta como uma fonte mais confiável do que historiadores especializados no período neobabilônico, este é um tema bastante apropriado para uma Testemunha de Jeová testar as alegações de sua liderança.

Ao longo de dezenas de artigos, apresentei muitas evidências de que Jerusalém caiu em 587 a.C. Esta é uma data que o Corpo Governante não pode aceitar, pois implicaria admitir ser incapaz de provar que, por volta do ano de 1914, foi escolhido por Deus para representá-Lo na Terra. O Corpo Governante até reconhece que as evidências apresentadas pelos historiadores parecem apoiar a data de 587 a.C.; no entanto, ressalta que os historiadores frequentemente fazem ajustes em seus entendimentos sobre o passado e que, portanto, não é prudente acreditar em tudo o que dizem, mesmo que falem com convicção.

Nenhum historiador pode negar a possibilidade de que o atual quadro da história babilônica pode ser enganoso ou errado. Por exemplo, sabe-se que os antigos sacerdotes e reis às vezes alteravam os registros para os seus próprios fins. Ou mesmo quando a evidência descoberta é exata, poderá ser interpretada mal pelos eruditos modernos ou ser incompleta, a ponto de que matéria ainda a ser descoberta poderá alterar drasticamente a cronologia do período em questão (Venha o Teu Reino, página 187).

É verdade que é necessário ajustar as explicações sobre o passado à medida que novas informações são descobertas. Essa linha de pensamento não é estranha às Testemunhas de Jeová, que frequentemente ajustam suas crenças conforme recebem novas orientações do Corpo Governante. No entanto, quando conceitos científicos entram em conflito com doutrinas que são essenciais para a religião, uma linha de pensamento oposta é adotada. Isso ficou evidente em um folheto mensal distribuído às Testemunhas na década de 1990, com orientações sobre como "vender" o livro Criação ou Evolução. O folheto continha a seguinte declaração, que deveria ser parafraseada pelas Testemunhas ao abordar possíveis "compradores" (o sublinhado foi acrescentado por mim):

Tenho certeza de que você sabe que muitos educadores endossam o conceito de que a família humana surgiu graças à evolução. Segundo a evolução, tudo surgiu por acaso. O que acha disso? [Permita uma resposta.] Essa idéia ainda é considerada uma teoria, e teoria é ‘conhecimento especulativo’ ou ‘suposição não comprovada’. Por séculos, o homem acreditou que a Terra fosse plana; agora sabemos que isso era uma suposição tola, não baseada em fatos. Poderíamos dizer o mesmo da teoria da evolução?” (Ministério do Reino de junho de 1995, página 8).

É verdade que, por milênios, acreditou-se que a Terra era plana. Agora, sabe-se que não é, e nem mesmo a Torre de Vigia defende a manutenção desse conceito antigo com o argumento de que os cientistas mudam frequentemente seus entendimentos sobre vários temas. O ponto aqui é que dúvidas a respeito de conceitos defendidos por cientistas são saudáveis, mas essas dúvidas precisam ser razoáveis. No estágio atual do conhecimento, não é razoável suspeitar que a Terra não seja, afinal, um planeta redondo.

RUSSELL SABIA

Dado que a Torre de Vigia mantém firmemente seu conceito de que Jerusalém foi destruída em 607 a.C., é necessário avaliar se seu posicionamento é razoável.

Quando consideramos que a data de 607 a.C. foi adotada na segunda metade do século XIX, época em que informações precisas sobre o ano da destruição de Jerusalém ainda não eram plenamente difundidas, é compreensível que líderes religiosos da época tenham tirado conclusões errôneas com base em informações equivocadas ou imprecisas sobre eventos antigos. Isso é importante porque o conhecimento atual sobre a antiga Babilônia não estava disponível desde sempre; ele é cumulativo e aumenta à medida que escavações arqueológicas revelam mais detalhes sobre a Mesopotâmia.

Referente à cronologia da antiga Babilônia, o conhecimento acumulado desde o fim do século XIX não resultou em qualquer mudança em relação à data de 587 a.C. para a queda de Jerusalém.

Como exemplo, temos o livro "A Syllabus of Old Testament History", de Ira M. Price, publicado em 1890, que inclui uma seção intitulada "Da queda de Jerusalém à queda de Babilônia", onde a queda de Jerusalém é datada de 587 a.C.

Além disso, a Sentinela de 1° de outubro de 1904 deu espaço a um leitor que trouxe à tona uma ideia que circulava à época sobre uma data alternativa para a queda de Jerusalém, que era cerca de 20 anos mais recente que a data de Russell. O desconhecido leitor se referiu a essa data como "cálculo padrão aceito", porém Russell optou por rejeitar o "cálculo padrão" em favor de manter o que ele chamou de "harmonias" e "paralelos tão notáveis" de seus próprios cálculos.

Até onde os indícios nos permitem concluir, Russell não poderia alegar desconhecimento sobre a data correta da queda de Jerusalém; no máximo, ele poderia alegar falta de fontes confiáveis. No entanto, dado que ele se considerava uma autoridade espiritual, não podia se dar ao luxo de tirar conclusões erradas sobre um assunto tão importante. Se Deus realmente o guiava, como seus seguidores acreditavam (e ele não afastava essa crença), a informação correta nem precisava ser tomada como "cálculo padrão" da época. Ela poderia estar em um livro esquecido em qualquer biblioteca distante, como em Praga, e o Espírito Santo, se realmente guiasse Russell, poderia trazer essa informação à atenção dele. Russell, por sua vez, poderia ignorar qualquer "cálculo padrão aceito", assim como cientistas pioneiros fizeram ao desafiar a crença amplamente difundida de que a Terra era plana.

Se podemos admitir que Russell, no final do século XIX, não tinha acesso a fontes confiáveis que indicassem 587 a.C. como a data correta para a queda de Jerusalém, não podemos dizer o mesmo sobre o atual Corpo Governante.

ARGUMENTOS DESONESTOS

Após ter sido catapultada ao comando da organização religiosa lá em meados da década de 1970, a diretoria da Torre de Vigia tem enfrentado o desafio de precisar negar a veracidade de informações tidas como corretas pelas maiores autoridades em cronologia do período neobabilônico. Como resultado, tem sido forçada a tergiversar sobre algumas provas, dedicando muito mais páginas para tentar refutar evidências frágeis, enquanto aborda apenas superficialmente outras questões, como posições lunares e eclipses lunares. Em alguns casos, a autoridade religiosa até ignora totalmente provas consideradas irrefutáveis, como as posições planetárias (Veja a seção "O outro lado" em cada um dos links acima)..

Além desse expediente evasivo, a Torre de Vigia, em seus artigos de cronologia de 2011, foi também desonesta em suas citações de autoridades.

A respeito disso, quando citou R. H. Sack, uma respeitada "autoridade em documentos cuneiformes", em um contexto que procurava destacar a insuficiência das crônicas babilônicas para determinar os eventos do período neobabilônico, as palavras de Sack parecem sugerir que os historiadores precisam recorrer a "fontes secundárias... na esperança de determinar o que realmente aconteceu" na antiga Babilônia durante o período neobabilônico (Esse período vai da ascensão de Nabopolassar, por volta de 625 a.C., até a queda de Babilônia, em 539 a.C.) A citação de Sack inclui reticências, deixando os leitores na incerteza sobre se a parte omitida afetaria o sentido da frase. Curiosamente, a Torre de Vigia omite a fonte. Quando ela foi finalmente identificada, descobriu-se que Sack não estava se referindo a toda a Babilônia, mas a uma região específica e a um período limitado, e não considerava que havia qualquer impedimento quanto a se era possível ter uma compreensão exata dos eventos do período neobabilônico.

Em outro caso de desonestidade, a Torre de Vigia, em suas discussões sobre posições lunares e eclipses lunares, citou o Professor John Steele e atribuiu às suas palavras significados diferentes do que ele realmente quis dizer. Steele foi consultado sobre isso e mostrou-se muito desapontado com a organização religiosa.

Em um assunto tão complexo como esse, é essencial que as fontes sejam autoridades respeitadas. A Torre de Vigia, além de torcer as palavras de algumas de suas referências, em outro caso até mesmo se expressou com base em autoridades anônimas. Isso fica evidente quando discorre sobre posições lunares e fundamenta suas conclusões em fontes identificadas apenas como "pesquisadores". Sobre o assunto, afirma categoricamente que "os pesquisadores" garantem que todas as descrições de posições lunares da VAT 4956 apoiam a data de 607 a.C. para a queda de Jerusalém. No entanto, como expus em meu artigo sobre o assunto, a quase totalidade das descrições aponta para 587 a.C. Ao contrário da Torre de Vigia, que convenientemente recorre a pessoas anônimas, meu artigo apresenta a metodologia, bem como a lista dos softwares utilizados. Qualquer pessoa pode usar a mesma metodologia e os mesmos softwares para verificar por si mesma qual data se sustenta em uma análise honesta.

Se a Torre de Vigia considera que a data de 587 a.C. para a queda de Jerusalém é um conceito tão insensato quanto o conceito de uma Terra plana, precisará dar passos adicionais para provar o seu ponto. Servir-se de argumentos evasivos e fazer releitura de autoridades respeitadas não lhe fará conquistar confiança, mas trará ainda mais descrédito a seus posicionamentos claramente heterodoxos em matéria de cronologia do período neobabilônico.

ÚLTIMAS PALAVRAS

Quando comecei a escrever os artigos que compõem este projeto, lá pelo final de 2022, Carl Olof Jonsson ainda estava vivo; ele faleceu aos 86 anos em abril de 2023. Com isso, este projeto que se conclui assume a figura de um singelo tributo à sua pessoa, uma vez que sua obra foi fundamental para me arrancar do cárcere religioso que me aprisionou por duas longas décadas.

A religião das Testemunhas de Jeová existia antes de Jonsson e continua a existir depois dele. Eu também vou morrer dentro de alguns anos e a religião das Testemunhas existirá depois de mim por décadas, talvez por séculos ou por milênios; contudo, graças ao trabalho de Jonsson e a outros dedicados dissidentes, vislumbra-se que ela terá cada vez menos influência destrutiva nas vidas dos membros, e já há evidentes sinais de que segura com gradual frouxidão os membros que ainda aprisiona.

Em se tratando da minha pessoa, a conclusão deste trabalho me concede dois importantes motivos de alegria.

O primeiro deles é que astronomia é uma das minhas paixões desde a adolescência, e foi satisfatório verificar por mim mesmo que este assunto — que me é tão nobre — pode ser usado para desmascarar uma crendice que foi tão perversa na minha vida.

O segundo motivo é que uma leve suspeita sobre a autenticidade da data de 607 a.C. me soou alarme ainda na minha época de estudante das Testemunhas. Eu lembro com clareza de ter corrido para verificá-la no meu livro de história de sexto ano ginasial (agora sétimo ano fundamental) e vi que o livro trazia a data de 586 a.C. Perguntei a meu instrutor alguma coisa a respeito, mas não lembro que resposta ele forneceu. Seja lá qual tenha sido, o fato é que eu já estava tão envolvido com as crenças “maravilhosas” que joguei a inquietação no lixo e abracei as crenças daí em diante, e a decisão me fez amargar muitos anos de sofrimento. Lembrar agora que ignorei aquele alarme faz que o assunto cronologia tenha um significado para mim que pode não ter para quase ninguém; pelo menos eu desconheço qualquer história parecida. Em complemento disso, por ocasião das minhas descobertas sobre graves erros das Testemunhas, em parte pelas leituras dos livros de Raymond Franz, foi o livro de Jonsson que me convenceu em definitivo que as Testemunhas não tinham base para alegar que foram em alguma época escolhidas por Deus para representá-Lo na Terra. Tudo isso — o incidente da minha época de estudante e a razão definitiva para a minha descrença — faz que este trabalho tenha um significado especial para mim e se resume num sentimento de gratificação quase sem comparação.

E este sentimento de satisfação que me acompanha nestas últimas palavras pode simbolizar também o encerramento das minhas atividades como dissidente ex-TJ. Como expressei na apresentação do meu livro em versão online, faz tempo que desejo abandonar qualquer discussão relacionada às Testemunhas e direcionar minha atenção para temas que agora me despertam maiores interesses. Foram quase dez anos de atividades, que inclui um blog com dezenas de artigos, um livro publicado em dois idiomas, e por fim a conclusão deste projeto sobre cronologia. O objetivo sempre foi reunir elementos para análise por parte das Testemunhas no que diz respeito a autenticidade de suas crenças, e tudo o que fiz me sinaliza que fiz o bastante — pelo menos o bastante do meu ponto de vista, que, no fim de tudo, é o que importa em muitos aspetos da vida, e neste com toda a certeza.


(sumário <> voltar <> avançar <> perfil do autor). 

Comentários

  1. O seu trabalho me ajudou sobremaneira. Sou profundamente grato. Em meio a pensamentos suicidas e desespero pela perca de parte da família, sua biografia e luta foram fontes de fortalecimento. E seu trabalho sobre 1914, o qual acompanho totalmente é perene! Logo terá todo o alcance que merece. Obrigado por tudo!

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    1. Oba, muito obrigado, meu nobre! Fico feliz que minhas palavras tenha te ajudado de alguma forma. É bom saber que o trabalho valeu a pena.

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Sumário

PARTE I - CONCEITOS E INTRODUÇÃO 01 - 1914 - O calcanhar de Aquiles da Torre de Vigia 02 - Informações sonegadas nos livros de estudos 03 - O depoimento de Raymond Franz 04 - A reação do Corpo Governante às pesquisas de Jonsson 05 - Confusão matemática nos cálculos da Torre 06 - Combinação ano a ano / Reis de Babilônia, Judá e Egito 07 - O cativeiro da Babilônia Os 70 anos 08 - Os 70 anos da profecia 09 - O que realmente diz a profecia dos 70 anos 10 - Sobre quando Babilônia se tornou potência regional 11 - Sobre quando começou e terminou o período de dominação 12 - Como ler Daniel 1 13 - Setenta anos "em" Babilônia? 14 - Os "70 anos" de Daniel e Crônicas 15 - Os "70 anos" de Zacarias Os "Sete Tempos" 16 -  Os "sete tempos" - significam mesmo 2520 anos? 17 - Jesus Cristo - quando realmente se tornou rei? PARTE II - CRONOLOGIA RELATIVA 18 - Cronologia relativa - fontes e metodologia 19 - Os reis da era neobabilônica 20 - ( Evid 1 )  His...

Eclipses lunares

As nove evidências fornecidas até agora são mais do que suficientes para confirmar a correção da ideia de que Jerusalém foi destruída pelos babilônios em 587 a.C. Mesmo sem as primeiras sete evidências, as duas últimas são absolutas, independentes de outras, e por si só constituem provas definitivas da precisão da data de 587 a.C. Portanto, esta última evidência, relacionada aos eclipses lunares, apenas se adiciona às várias outras evidências que, até agora, foram pouco defendidas ou nem mesmo abordadas pela Torre de Vigia. As informações sobre eclipses neste artigo foram analisadas com base nos dados gerais apresentados na introdução do artigo sobre posições lunares . Além disso, é importante considerar o conteúdo das notas 1 e 2 do referido artigo bem como também consultar o artigo Calculando hora de início e término de eclipse . As fontes utilizadas incluem o livro "Babylonian Eclipse Observations from 750 BC to 1 BC", de Peter J. Huber e Salvo De Meis, assim como o arquiv...