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A Torre de Vigia revisita a VAT 4956

Se você conhece cada cena de um filme que começou a ser exibido às 22 horas e o minuto correspondente a cada cena, você sabe exatamente quanto tempo se passou desde as 22 horas se alguém lhe diz qual cena se passa agora na tela da TV.

Pode-se dizer que o céu é como um filme que começou há muitas eras. Graças aos movimentos padronizados de milhares de astros, principalmente Sol, Lua, estrelas e planetas — e eclipses —, desenvolveu-se sofisticados programas que nos tornam capazes de voltar para cenas anteriores e verificar qual era a cena do filme celeste vista pelos povos antigos há milhares de anos. Dessa forma, se temos em mãos um documento da antiguidade e somos capazes de ler a descrição da posição combinada de dois ou mais astros, e de astros em relação às suas posições no céu, podemos ser capazes de dizer em qual ano, e até qual dia e hora, ocorreu a cena celeste descrita.

Mas alguém pode dizer que, justamente pelo fato de os movimentos dos astros serem padronizados e se repetirem a intervalos regulares, é possível confundir uma combinação de astros no céu e atribuir a ela uma data errada. Essa possibilidade existe, por isso é preciso ser cauteloso quanto a atribuição de datas. Daí porque, para datarmos corretamente a descrição de um fenômeno celeste ou a posição combinada de astros, é necessário que haja informações suficientes e um espaço de tempo delimitado. Por exemplo, se lemos que alguém diz que sua mãe faleceu em 2021 durante um eclipse, temos quatro datas prováveis porque houve quatro eclipses em 2021(O tempo é delimitado, mas a informação é insuficiente). Se se acrescenta que era um eclipse lunar, então as datas prováveis se reduzem para duas. Por fim, se somos informados que a lua ficou totalmente coberta pela sombra da Terra, então podemos cravar que o falecimento ocorreu na noite de 25 para 26 de maio daquele ano — data do único eclipse lunar total de 2021.

A VAT 4956

Em se tratando de documentos antigos com descrição dos céus, um de nosso interesse chama-se VAT 4956 (Veja aqui e aqui). Trata-se de um documento em argila, datado de alguma época do império persa, e se sabe que é uma cópia de um registro mais antigo. Nele constam descrições de cerca de 30 fenômenos celestes que teriam ocorrido durante o 37º ano do reinado de Nabucodonosor, os quais inclui treze descrições de posições lunares, bem como também posições planetárias e um eclipse lunar. Quando se examina as descrições do céu em programas de computador, verifica-se que quase todas as descrições são compatíveis com o ano de 568 a.C. Assim, visto que verificou-se em artigos anteriores que Nabucodonosor destruiu Jerusalém em seu 18º ano de reinado, e que a VAT 4956 permite concluir que seu 17º ano corresponde a 588 a.C., é apenas lógico concluir que ele destruiu Jerusalém em 587 a.C. — em seu 18º ano de governo sobre a Babilônia.

Não é surpresa, portanto, que a Torre de Vigia tenha procurado desacreditar a VAT 4956. Fez isso em uma Despertai! de 1972 bem como no livro Venha o Teu Reino, de 1981. Pouco depois desse ano, Carl Olof Jonsson publicou o seu livro, com argumentos devastadores contra a data de 607 a.C., entre os quais incluía o testemunho definitivo da VAT 4956. Chegando a década de 1990, a internet tornou acessível a milhões de Testemunhas uma quantidade enorme de evidências contra aquela data. Assim, não deveria ter sido surpresa que a Torre de Vigia tenha sentido necessidade de revisitar a VAT 4956. Fê-lo em 2011 aqui e aqui. A surpresa maior, contudo, ficou por conta do fato que agora a organização religiosa considera crível o documento astronômico. Mas não, a Torre de Vigia não aceitou o testemunho apresentado, tal como lido pelos historiadores; em vez disso, com base nas conclusões de “pesquisadores” não identificados, atribuiu ao documento a data de 588 a.C., tomando-o como apoio à data de 607 a.C.

Claro que as conclusões dos “pesquisadores” podem ser testadas por qualquer pessoa com um conhecimento básico sobre o assunto, como será feito em capítulos futuros deste estudo. Mas a Torre de Vigia deu um passo além; em seu esforço para fazer o documento astronômico dizer o que ela queria que ele dissesse, tratou de fazer — acreditem! — uma “correção” no calendário babilônico.

Fez isso quando procurou fazer que o eclipse citado pela VAT 4956, que os historiadores entendem que faz referência a um eclipse de 568 a.C (ano astronômico -567), é, em vez disso, referente a um eclipse de 588 a.C (ano astronômico -587).

A tabuinha [VAT 4956] menciona um eclipse lunar que, segundo os cálculos, ocorreu no 15.º dia do terceiro mês babilônico, Simanu. Realmente ocorreu um eclipse lunar nesse mês em 568 AEC — 4 de julho no calendário juliano. No entanto, também houve um eclipse 20 anos antes, em 15 de julho de 588 AEC. [nota]17 (A Sentinela de 1º de novembro de 2011, página 25)

Partindo do pressuposto que os seus leitores estão bem familiarizados com o calendário babilônico, a Torre de Vigia mostra-se muito sucinta no parágrafo acima. A nota 17 anexa ao parágrafo ensaia uma explicação, mas as informações expostas são reduzidas o suficiente para a explicação parecer aceitável.

Para quem não sabe, a soma da duração dos 12 meses do calendário babilônico dá 355 dias e isso é cerca de 10 dias a menos do que o ano solar, que é de 365 dias e seis horas. Para que o ano em Babilônia começasse mais ou menos sempre na mesma época, por volta da segunda metade de março e nunca antes disso, era preciso acrescentar um mês extra a cada dois ou três anos, que geralmente se dava pela duplicação de Ululu, 6º mês, ou pela duplicação de Adaru, 12º mês.

Conforme pode ser lido na sexta linha da VAT 4956, houve a duplicação de Adaru no final do ano anterior ao que se escreve o documento; possivelmente com base nessa declaração e em outros elementos, o calendário de Babilônia preparado por Parker e Dubberstein faz constar um 13º mês (12b) no final do ano babilônico que antecede ao 37º ano do reinado de Nabucodonosor. Como o 12º mês (12a) termina em 24/3, apenas cerca de dois dias depois do que é atualmente considerado começo de primavera no Hemisfério Norte, a duplicação de Adaru parece bem aceitável. Feito isso, este segundo Adaru, de 29 dias, move o começo do ano de 25 de março para 23 de abril, e justifica porque o dia 15 do terceiro mês podia ser relacionado com o eclipse de 4 de julho.

A Torre de Vigia, no entanto, diz que o eclipse citado pela VAT 4956, datado de 15 de Simanu, pode ser uma referência ao eclipse de 15 de julho de 588. Se isso for verdade, a VAT 4956, pelo menos neste detalhe, apoiaria tanto a data de 587 a.C. como a data de 607 a.C. Vamos checar.

De acordo com o livro Babylonian Chronology, o ano de 588 a.C. começou em 4 de Abril. Isso condiciona que o dia 15 de Simanu, terceiro mês, alcance apenas o dia 16 de junho, e não o dia 15 de julho, como seria necessário para justificar porque a VAT 4956 faz referência a um eclipse em 15 de Simanu — e não houve nenhum eclipse em 16 de Junho daquele ano!

A corrigidinha

É neste ponto que a Torre de Vigia dá uma “corrigidinha” no calendário babilônico. Servindo-se da informação obtida da VAT 4956 de que houve a duplicação do 12º mês no ano anterior ao ano em que se escreveu o documento astronômico, ela adiciona um segundo Adaru ao ano babilônico que termina na primavera de 588 a.C. Como Adaru é um mês de 29 dias, isso acarreta o atraso em 29 dias de todos os meses subsequentes, não somente para os três meses pretendidos, e isso terá consequência de longo prazo neste estudo. A curto prazo, a manobra da Torre de Vigia move o começo do ano babilônico de 4 de Abril para 3 de Maio, o segundo mês passa de 5 de Maio para 2 de Junho, e o terceiro mês, de 2 de Junho para 1º de Julho. Com isso, a Torre de Vigia atinge o objetivo de fazer com que o dia 15 de Julho de 588 a.C, data de um eclipse lunar, corresponda a 15 de Simanu, e dessa forma pode dizer que a VAT 4956, neste aspecto, apoia também a data de 607 a.C.

O aparente sucesso da Torre de Vigia, no entanto, não sobrevive a um bom escrutínio. Para começar, vale perguntar se o acréscimo de um Adaru ao final do ano que antecede a escrita do documento astronômico era realmente necessário. Lembremos aqui que um mês extra é acrescentado para que o novo ano babilônico nunca comece antes de meados de Março. Porém, diferentemente do que aconteceu na Primavera de 568 a.C., o ano em questão termina em 3 de abril, e isso concede uma margem de mais 10 dias em relação ao que atualmente consideramos início da Primavera. Com isso, era desnecessário acrescentar um segundo Adaru ao ano que antecede a escrita do documento astronômico.

Por fim, como pode ser visto, a correção proposta pela Torre de Vigia move o começo do ano de 4 de Abril para 3 de Maio. Segundo Carl Olof Jonsson, não existe um registro de um caso sequer em que o ano babilônico começou tão tarde quanto em 3 de Maio.

O ano novo babilônico nunca começou tão tarde como o mês de maio. Conforme demonstrado por Parker & Dubbestein em Cronologia Babilônica, ele sempre começou em março ou abril. Isto foi verdade, não só durante o período neobabilônico e antes, como também durante os períodos persa e selêucida e depois, incluindo o primeiro século da era cristã. Durante 700 anos, o novo ano sempre começou em março ou abril, nunca, em maio.

Se os autores da revista A Sentinela insistem que uma vez durante este longo período, a saber, em 588 AEC o ano novo começou tão tarde quanto 2/3 de maio, isso foi um caso único. Para um erudito imparcial e sério, a conclusão óbvia é que esta ideia é uma invenção dos autores de A Sentinela, numa tentativa desesperada de mudar a data duma tabuinha que, por si só, destrói totalmente a cronologia da Torre de Vigia (Resposta de Carl Olof Jonsson à Sentinela de Novembro de 2011).


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Sumário

PARTE I - CONCEITOS E INTRODUÇÃO 01 - 1914 - O calcanhar de Aquiles da Torre de Vigia 02 - Informações sonegadas nos livros de estudos 03 - O depoimento de Raymond Franz 04 - A reação do Corpo Governante às pesquisas de Jonsson 05 - Confusão matemática nos cálculos da Torre 06 - Combinação ano a ano / Reis de Babilônia, Judá e Egito 07 - O cativeiro da Babilônia Os 70 anos 08 - Os 70 anos da profecia 09 - O que realmente diz a profecia dos 70 anos 10 - Sobre quando Babilônia se tornou potência regional 11 - Sobre quando começou e terminou o período de dominação 12 - Como ler Daniel 1 13 - Setenta anos "em" Babilônia? 14 - Os "70 anos" de Daniel e Crônicas 15 - Os "70 anos" de Zacarias Os "Sete Tempos" 16 -  Os "sete tempos" - significam mesmo 2520 anos? 17 - Jesus Cristo - quando realmente se tornou rei? PARTE II - CRONOLOGIA RELATIVA 18 - Cronologia relativa - fontes e metodologia 19 - Os reis da era neobabilônica 20 - ( Evid 1 )  His...

Projeto 1914 - conclusão

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