Conforme mostrado anteriormente, existem quatro passagens bíblicas que fazem referência aos 70 anos da profecia de Jeremias. A passagem de Daniel e Crônicas serão consideradas juntas por terem basicamente o mesmo sentido, a saber, parecem dar sentido ao conceito da Torre de Vigia de que Jerusalém ficaria desabitada por 70 anos, desde a queda de Jerusalém e deportação dos judeus até o retorno deles, após a queda de Babilônia.
Referente a Daniel.
(Daniel 9:1, 2) No primeiro ano de Dario, que era filho de Assuero, descendente dos medos, e que tinha sido feito rei sobre o reino dos caldeus, sim, no primeiro ano do seu reinado, eu, Daniel, compreendi pelos livros o número de anos para se cumprir a desolação de Jerusalém, conforme mencionado na palavra de Jeová dirigida ao profeta Jeremias; seriam 70 anos.
Para efeito de clareza, note que Daniel diz no primeiro versículo que narra os eventos que lhe aconteceram “no primeiro ano de Dario”, isto é, em algum tempo nos meses subsequentes à queda de Babilônia, que ocorreu por volta de outubro de 539 a.C.
O que quer que Daniel tenha desejado dizer com o termo desolação (ou devastação, de acordo com outras Bíblias), o significado não pode envolver um período de 70 anos a decorrer da tomada de Jerusalém à queda de Babilônia, pois, como visto anteriormente, esse período de tempo é de apenas 48 anos: decorre de 587 a.C. a 539 a.C.
Daniel possivelmente sabia disso, pois ele, ao dizer que compreendeu pelos livros o número de anos da desolação, estava provavelmente se referindo à carta de Jeremias enviada aos deportados em Babilônia. Trata-se de uma carta que fora enviada no 4º ano do reinado de Zedequias, que teve duração de 11 anos e terminou com a queda de Jerusalém em 587 a.C., o que nos faz deduzir que era uma carta datada de por volta de 594 a.C. - uma data que não comporta mais um período de 70 anos até a queda de Babilônia. Além disso, Daniel certamente tinha contato com os judeus da última deportação e podia saber com exatidão a data da destruição de Jerusalém.
Dada as informações acima, o que exatamente Daniel quis dizer ao usar a frase “compreendi pelos livros o número de anos”?
Carl Olof Jonsson responde:
Parece lógico concluir que Daniel não teve problemas em entender a profecia dos setenta anos. Como judeu, falante de hebraico, ele não teria qualquer dificuldade em entender que o texto hebraico de Jeremias 29:10 fala em setenta anos “para Babilônia”, e que esta era uma referência ao período de supremacia babilônica. Com base no fato de que esta supremacia tinha terminado há pouco, Daniel só poderia chegar a uma conclusão: Os setenta anos tinham terminado! (Os Tempos dos Gentios Reconsiderados, página 255).
Apesar de ter compreendido que os 70 anos para Babilônia já terminaram, na oração que Daniel faz em seguida é possível ver sinais de que a desolação de Jerusalém continuava, e o profeta relaciona a desolação da cidade com a punição sofrida pelos seus habitantes, agora vivendo no exílio. A oração, portanto, se revela num pedido para que Deus providencie o retorno dos judeus a Jerusalém e acabe assim com a desolação da cidade.
(Daniel 9:17,18) E agora, ó nosso Deus, escuta a oração do teu servo e as súplicas dele, e, por tua própria causa, ó Jeová, faz a tua face brilhar sobre o teu santuário, que está desolado. Inclina o teu ouvido, ó meu Deus, e ouve! Abre os olhos e vê a nossa condição desolada e a cidade que leva o teu nome; pois estamos fazendo súplicas a ti, não por causa dos nossos atos justos, mas por causa da tua grande misericórdia.
Posto isso, fica evidente que a desolação de Jerusalém e os 70 anos da profecia são temas distintos e põe por terra a interpretação da Torre de Vigia e sua tentativa de fazer as palavras de Daniel dizer o que não dizem, isto é, que a cidade de Jerusalém ficaria desabitada, desolada ou devastada, por exatos 70 anos.
E a interpretação da Torre de Vigia não é exclusiva. Algumas Bíblias foram ao ponto de parafrasear as palavras de Daniel para dizer exatamente esse conceito; é o que faz a Nova Versão Internacional:
No primeiro ano do seu reinado, eu, Daniel, compreendi pelas Escrituras, conforme a palavra do Senhor dada ao profeta Jeremias, que a desolação de Jerusalém iria durar setenta anos (Daniel 9:2; NVI).
Referente a 2 Crônicas
(2 Crônicas 36:20, 21) Ele levou cativos para Babilônia os que escaparam da espada, e eles se tornaram servos dele e dos seus filhos até que o reino da Pérsia começou a dominar. Isso aconteceu para que se cumprisse a palavra de Jeová falada por Jeremias, até que a terra tivesse saldado os seus sábados. Durante todo o tempo em que ficou desolada, ela guardou o sábado, até cumprir 70 anos.
A uma leitura superficial, parece evidente que o autor de Crônicas, possivelmente Esdras, associa a desolação de Jerusalém a um período de 70 anos. Como visto anteriormente, isso está em desacordo com os fatos históricos, pois Jerusalém não ficou desabitada, desolada, ou devastada, por 70 anos. Assim como Daniel, o autor possivelmente sabia disso, pois, como escritor, ele cita incontáveis documentos e há motivos para crer que ele estava bem ciente das datas envolvendo a deportação e retorno dos judeus.
Tendo isso em mente, fica a pergunta sobre o que ele quis dizer ao associar períodos sabáticos à desolação de Judá?
Antes de avançarmos no assunto, é preciso esclarecer exatamente o que era o descanso sabático para Israel. Como é de conhecimento de alguns, a lei dada a Moisés estipulava que os hebreus precisavam descansar no sétimo dia da semana, que era o dia de sábado; a lei também estabeleceu um descanso anual para a terra, depois de seis anos consecutivos de plantio. Além disso, havia um outro descanso de um ano a cada 50 anos, que era chamado de Jubileu. Como os judeus frequentemente eram infiéis e não cumpriam os descansos sabáticos, isso resultava em ficarem em débito com a lei. É essa a razão de o autor de Crônicas associar a desolação de Judá com uma compensação dos sábados que foram deixados de ser saldados, ou compensados, por muitas vezes.
Com esse pano de fundo, vale relembrar a pergunta: O que o autor de Crônicas quis dizer ao associar períodos sabáticos à desolação de Judá? Teria ele pensado em um período de descanso de 70 anos, como interpreta a Torre de Vigia?
Referente ao descanso da terra, o livro de Levítico esclarece exatamente o que envolvia a compensação dos sábados. Todo o capítulo 26 do livro apresenta as consequências para a desobediência em cumprir a lei do descanso da terra; a maior punição envolvia a deportação para terras estrangeiras - exatamente o que aconteceria com Jerusalém séculos depois.
(Levítico 26:33-35) Espalharei vocês entre as nações e vou desembainhar a espada atrás de vocês; a sua terra ficará desolada, e as suas cidades serão devastadas. 34 “‘Naquele tempo a terra saldará os seus sábados, todos os dias em que estiver desolada, enquanto vocês estiverem na terra dos seus inimigos. Então a terra descansará, visto que ela deve saldar os seus sábados. 35 Ela descansará todos os dias em que estiver desolada, pois não descansou nos sábados em que vocês moravam nela.
Como visto acima, o descanso da terra se daria “enquanto” a terra estivesse devastada, por “todos os dias em que estiver desolada”. Por esses termos, podemos compreender que o descanso sabático da terra de Judá se dava pelo tempo que a terra ficasse desolada, enquanto os judeus estavam em Babilônia, e não tem qualquer relação com um período de 70 anos.
Uma releitura da última frase de Crônicas, versículo 21, agora se faz muito esclarecedora:
Durante todo o tempo em que ficou desolada, ela guardou o sábado, até cumprir 70 anos.
Portanto, a comparação entre o que diz Levítico e o autor de Crônicas permite concluir que a compensação dos sábados transcorreu “durante” todo o tempo que a terra de Judá ficou desolada, que transcorreu desde a queda de Jerusalém até o retorno do judeus, umas cinco décadas depois.
Os últimos dois versículos do capítulo 36 de 2 Crônicas trás uma última declaração problemática.
(2 Crônicas 36:22, 23) No primeiro ano de Ciro, rei da Pérsia, a fim de que se cumprisse a palavra de Jeová falada por Jeremias, Jeová despertou o espírito de Ciro, rei da Pérsia, para que ele fizesse em todo o seu reino uma proclamação, que ele também registrou por escrito. Dizia o seguinte: “Assim diz Ciro, rei da Pérsia: ‘Jeová, o Deus dos céus, deu-me todos os reinos da terra, e ele me designou para lhe construir uma casa em Jerusalém, que fica em Judá. Quem entre vocês pertence ao povo dele? Que Jeová, seu Deus, esteja com ele. Portanto, que ele suba para lá!’.
O primeiro ano de Ciro como rei da Pérsia transcorreu de março de 538 a.C. a março de 537 a.C. É dito que nesse ano Ciro emitiu um decreto para que os judeus exilados pudessem retornar a Jerusalém e isso é relacionado com o cumprimento das palavras de Jeremias.
É possível ver nessas palavras alguma ideia de que os 70 anos da profecia se estenderam além de 539 a.C., o ano da destruição de Jerusalém? É a interpretação da Torre de Vigia, que coloca a chegada dos judeus a Jerusalém no ano de 537 a.C. e estabelece esse ano como o fim dos 70 anos.
(Jeremias 25:11, 12) E toda esta terra será reduzida a ruínas e se tornará um motivo de terror, e essas nações terão de servir ao rei de Babilônia por 70 anos.”’ 12 “‘Mas, quando se completarem 70 anos, ajustarei contas com o rei de Babilônia e aquela nação por causa dos seus erros.
A parte sublinhada nos indica que o ajuste de contas viria depois que se cumprisse os 70 anos. Se Babilônia caiu em 539 a.C., não há margem para se concluir que os 70 anos se estenderam para depois desse ano. A profecia é explícita ao dizer que o ajuste de contas se sucederia ao fim dos 70 anos, não o contrário.
Se é assim, o sentido das palavras de Crônicas pode estar relacionado a outro detalhe da profecia, que já foi analisado aqui:
(Jeremias 29:10) “Pois assim diz Jeová: ‘Quando se completarem 70 anos em Babilônia, voltarei a minha atenção para vocês e cumprirei a minha promessa, trazendo-os de volta para cá.’
O decreto de Ciro envolve o retorno dos judeus à terra de Judá e pode ser a essa promessa de Jeremias, registrada no capítulo 29, que o cronista faz referência. Isso faz mais sentido ainda se nos lembrarmos que o profeta Daniel também fez uma distinção entre o fim dos 70 anos, com a queda de Babilônia, e o fim da desolação de Judá, que seria marcada com o retorno dos judeus à terra prometida.
Considerando as palavras de Daniel e de Crônicas, ver-se que nem um nem outro dá margem a uma interpretação de que Jerusalém ficou desabitada ou desolada por exatos 70 anos. Essa conclusão é fundamentada com o fato de que (1) ambos os autores podiam dispor de informações que lhes possibilitavam saber que Jerusalém não fora destruída exatos 70 anos antes do fim do exílio, e com o fato de que (2) suas palavras, se examinadas com o devido cuidado, não dizem o que aparentam dizer em uma leitura superficial.
Comentários
Postar um comentário