Se você alguma vez pegou um livro de doutrinas básicas das Testemunhas para investigar alguma coisa sobre a data de 1914, pode ter-se deparado com algumas imagens parecidas com esta abaixo.
A imagem acima foi postada em um artigo anterior desta série, onde demonstrei que a Torre de Vigia apresenta uma explicação demasiadamente resumida da doutrina que é fundamental na religião. E não adianta deixar de lado os livros de doutrinas básicas e ler gorduchos livros de profecias; as explicações são as mesmas, e por vezes mais sucintas.
Como visto neste artigo, A Torre de Vigia combina informações de cinco livros bíblicos diferentes e conclui que 2520 anos deveria se passar entre a queda de Jerusalém, que marcou o fim do último rei humano da linguagem de Davi, até a posse de Jesus Cristo como rei do Reino de Deus.
Quanta confiança podemos depositar na análise da Torre de Vigia? Vejamos.
A visão do capítulo quatro de Daniel é um sonho de Nabucodonosor, que ele não consegue ter a interpretação, até que Daniel interpreta-lhe o significado. Trata-se do sonho de uma grande árvore que é cortada pelo tronco. O mensageiro angélico que ordena o corte da árvore de repente passa a referir-se a “ele” sem que se saiba exatamente quem é “ele”.
(Daniel 4:14-16) Mas deixem o toco com as raízes na terra, com faixas de ferro e de cobre, no meio da relva do campo. Que ele seja molhado pelo orvalho dos céus, e que a sua porção seja com os animais, no meio da vegetação da terra. Que o seu coração seja mudado para que não seja mais um coração humano, e lhe seja dado um coração de animal, e passem sobre ele sete tempos.
E cabe a Daniel contar a Nabucodonosor que “ele” próprio, o rei, é o representado pela árvore. Ela foi cortada e a preservação do tronco significa garantias de que voltará a crescer. Do mesmo modo, Nabucodonosor será afastado de suas funções reais e viverá como louco, por um período de “sete tempos”, e então os poderes reais serão devolvidos.
A expressão “sete tempos” da profecia é a que mais nos interessa aqui. A profecia diz que Nabucodonosor passaria “sete tempos” como louco e o próprio relato conclui com o comprimento da profecia em Nabucodonosor. Ele passa “sete tempos" como louco, depois é restabelecido ao trono. Tudo poderia se resumir a isso, a profecia foi feita, a profecia foi cumprida.
Mas a Torre de Vigia afirma que ela tem um significado mais amplo, e aqui saímos pelo mundo da imaginação a procurar o cumprimento da profecia que a Torre de Vigia visionou.
O que são “sete tempos”? Quanto dura “sete tempos”? A Torre de Vigia traz à baila o capítulo 12 de Apocalipse, que contém um jogo de palavras com “tempos” e estabelece que três tempos e meio equivale a 1260 dias.
Três tempos e meio = 1260 dias => um tempo = 360 dias.
“Sete tempos” x 360 dias = 2520 dias
Ou:
2 (três tempos e meio) = 2 x 1260 dias = 2520 dias.
No significado amplo imaginado pela Torre de Vigia, a árvore representa o reino de Deus em sua atuação terrena, que foi simbolicamente cortado quando o último rei da descendência de Davi foi destronado por ocasião da destruição de Jerusalém.
Ao passo que o tempo de loucura de Nabucodonosor pode ser estipulado como de duração de “sete anos”, se se considerar 360 dias como 12 meses de 30 dias, a Torre de Vigia não encontra nenhum significado especial no fim de “sete anos”, se contar sete anos a partir da data que estabelece para a destruição de Jerusalém, que é o ano de 607 a.C. Por essa razão, ela adota um conceito antigo de considerar como regra profética a ideia de transformar dias em anos como forma de estabelecer significados proféticos (Números 14:34; Ezequiel 4:6). Ao fazer isso, a Torre de Vigia calcula que 2520 dias deve ser transformado em 2520 anos, e que esse é o tempo em que o reino de Deus ficaria sem representação na terra, e equivale também ao tempo em que Jerusalém seria pisada pelas nações, conforme palavras de Jesus Cristo.
Reexaminando a explicação
A Torre de Vigia tem colocado no papel uma grande quantidade de informações que posteriormente têm sido admitidas como incorretas por ela própria. Será esse o caso de informações sobre os “sete tempos”?
A regra bíblica de um dia por um ano.
Na explicação da Torre de Vigia, se a regra bíblica de um dia por um ano não for correta, cai por terra a sua explicação. Assim, é possível afirmar categoricamente que ela é correta?
No contexto das declarações sobre um dia por um ano, tanto em Números como em Ezequiel, não há uma única declaração a indicar que ela deveria ser uma regra profética, que possibilitasse fazer interpretações de profecias do modo como a Torre de Vigia o faz.
Além disso, fora o caso dos “sete tempos”, há somente uma outra profecia em que a Torre de Vigia faz uso da regra de um dia por um ano e a aplicação mostra-se insustentável. Trata-se das “setenta semanas” de Daniel 9:24-27.
Em suas explicações sobre o significado dessa profecia, a Torre de Vigia afirma que “a maioria dos peritos bíblicos concorda que as “semanas” desta profecia são semanas de anos”. A regra bíblica de uma dia por um ano não é citada nesse contexto, mas a aplicação dela é implícita. Sabe-se que 70 semanas correspondem a 490 dias e a profecia destaca que, ao fim de 69 semanas (62+7), viria o Messias. Sessenta e nove semanas são 483 dias e, de acordo com as contas da Torre de Vigia, esse número deve ser transformado em anos e o ponto de partida da contagem seria o ano em que se deu a ordem para se reconstruir as muralhas de Jerusalém. De acordo com a Torre de Vigia - saliente-se isso -, a ordem para se reconstruir as muralhas de Jerusalém foi dada no de 455 a.C., que corresponderia ao 20º ano de Artaxerxes como rei da Pérsia (Neemias 2).
Não é bem assim, de acordo com os historiadores. Se 455 a.C. é o 20º ano do reinado de Artaxerxes, então ele teria começado a reinar em 475 a.C. A enciclopédia Britânica, no entanto, coloca o início do reinado de Artaxerxes em 465 a.C - o que faz seu 20º ano de reinado ser 445 a.C. - não 455 a.C. A lista de reis de Ptolomeu, conforme tabela divulgada por Carl Olof Jonsson, também coloca o início do reinado de Artaxerxes por volta de 465 a.C. Se contarmos 483 anos a partir de 445 a.C., isso colocaria o batismo de Jesus Cristo, quando ele surgiu como Messias, por volta de 40 d.C., uma data que não é aceita pelos cristãos e é historicamente incorreta. É claro que a Torre de Vigia está consciente dessas informações, ela própria confessa em sua enciclopédia bíblica Estudo Perspicaz, que “obras de referência colocam o ano de ascensão de Artaxerxes em 465 AEC”. No entanto, em seguida dedica duas páginas inteiras na tentativa de desacreditar os historiadores. Para evidência adicional a favor da data de 465 a.C., veja o artigo ``O vigésimo ano de Artaxerxes e as “setenta semanas” de Daniel, escrito por Carl Olof Jonsson.
Para ser aceito como correto, deveria haver pelo menos um caso é que o princípio ano-dia foi aplicado com sucesso. Não há um caso sequer, há unicamente a palavra da Torre de Vigia.
Os supostos “sete anos" de loucura de Nabucodonosor.
Que o sonho de Nabucodonosor fala em “sete tempos” e que o rei passaria por um período de loucura que duraria “sete tempos”, isso lemos na profecia. O que não lemos é que esse período de “sete tempos” duraria exatamente “sete anos”. O conceito de que “sete tempos” equivale a sete anos é uma interpretação da Torre de Vigia e segue uma tradição bem antiga, não necessariamente fundamentada. Ter certeza de que os “tempos” correspondem mesmo a “anos” deveria ser o primeiro passo a se tomar antes de procurar aplicar a eles qualquer suposta regra profética, como o chamado princípio ano-dia.
De acordo com Jonsson, a palavra aramaica para “tempos” não significa rigorosamente “anos”.
Na verdade, a palavra para “tempos” no texto aramaico original de Daniel (singular: 'iddan) significa geralmente “tempo, período, época” e pode se referir a qualquer período fixo e definido de tempo (Os Tempos dos Gentios Reconsiderados, página 299).
A Torre de Vigia, com outras fontes, afirma o contrário com convicção:
Os lexicógrafos mostram que a palavra “tempos” (do aramaico ʽid·dán) é usada na profecia de Daniel com o significado de “anos.
Independente do significado de uma palavra aramaica, cabe aqui saber se Nabucodonosor passou realmente “sete anos” louco; de acordo com Jonsson, durante seus 43 anos de reinado, não há um único intervalo de sete anos sem que haja registro de atividade de Nabucodonosor. Há um intervalo de 6 anos sem atividade, cujo fim coincide com o fim do reinado, o que não está de acordo com a profecia, que diz que, após sete anos de loucura, os poderes reais seriam restabelecidos a Nabucodonosor (Veja Os Tempos dos Gentios Reconsiderados, pagina 298).
O que se registra acima é um forte testemunho de que a palavra para “tempos” pode não significar anos; se a profecia foi proferida, se foi cumprida como a Bíblia atesta no mesmo capítulo quatro de Daniel, então o período de loucura não durou sete anos, e isso torna inútil qualquer tentativa de aplicar aos “sete tempos” o chamado princípio ano-dia. Se não se tem os dias exatos, como se faria uma conta assim?
O capítulo 12 de Apocalipse
O capítulo 12 de Apocalipse parece deixar muito explícito que um “tempo” equivale a 360 dias, e pode ser tomado como um ano se se considerar 12 meses de 30 dias. Se é assim, então pareceria lógico concluir que “sete tempos” equivale a “sete anos”. Mesmo que se possa dizer isso, ainda precisaríamos ter certeza que é correto o tal princípio ano-dia. Se não podemos com convicção transformar 2520 dias em anos, então é de pouca utilidade saber que “sete tempos” equivale a 2520 dias.
Conclusão
À base do que foi examinado neste artigo, parece ficar claro que não há uma base para se afirmar com certeza que a profecia sobre a grande árvore significa um período de tempo de 2520 anos, que começou em 607 a.C. e terminou em 1914. Tal qual aconteceu com o caso dos “setenta anos” de Jeremias, evidencia-se mais uma vez que faltou aos primeiros líderes da Torre de Vigia um estudo cuidadoso dos escritos sagrados antes de começarem a fazer declarações taxativas, que depois se provariam indefensáveis.
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